"O grande problema da nossa época é que os homens não querem ser úteis, mas importantes" (Winston Churchill)
Abaixo de cão:
A política tailandesa pouco me diz e sobre ela assumo uma atitude, senão indiferente, distante. Ocasiões há, porém, em que a tento compreender, evitando dela aproximar-me de forma acalorada mas compreender-lhe as manifestações.
Desde há dias que se verifica pequena agitação em Banguecoque em torno do Palácio do Governo. Uma manifestação de estipendiados do ex-primeiro ministro insiste em copiar - em versão desengonçada, já sem novidade e sem graça - a vaga amarela que em Dezembro obrigou à saída de um governo absolutamente incapaz de se fazer respeitar. É evidente que a agitação vermelha não alterará o estado das coisas e poderá, até, levar os tailandeses a retirar aos partidários de Thaksin a influência de que ainda gozam em algumas regiões do país. Esta gente não é, bem entendido, aquela falange de amantes da ordem e do civismo que alguns jornalistas aqui estacionados pretendem fazer crer aos incautos leitores de Londres, Washington e Berlim, mas gente perigosa que tem atacado indiscriminadamente, por todo o norte e nordeste da Tailândia, caravanas do governo, partidários amarelos e até ajuntamentos de natureza social e cultural que consideram indesejáveis.
Passei hoje em frente da sede do governo e verifiquei aquilo que aqui dissera quando estive há meses numa manifestação vermelha no Estádio Nacional. A maioria não sabe o que por lá está a fazer, foi trazida das aldeias, alimentada e vestida. Dá dó ver tanto idoso arregimentado pela cacicagem, repetindo com olhar vazio palavras de ordem sem sentido. Depois, ao chegar a casa, assisti pela televisão ao debate requerido pelos deputados vermelhos. O vice primeiro ministro, Suthep, calmo, didáctico e correcto, lá tentou explicar a posição do governo e asseverar que não lançará a policia de choque contra os manifestantes, ao contrário do que aconteceu no "Outubro sangrento", quando muitos amarelos [monárquicos] morreram e outras centenas foram feridos em brutais cargas das forças da ordem. Os deputados vermelhos - apercebi-me agora, pois já compreendo suficientemente a língua para me inteirar do que dizem - são de pobreza argumentativa digna de piedade, deles não se esperando grandes voos de erudição nas artes parlamentares. Como acontece em todas as formas decaídas de democracia, o abaixamento da qualidade dos representantes concorre para matar a reputação da democracia, oferecendo em bandeja aos seus críticos argumento para a desprezar e derrocar. O direito ao voto universal e à participação dos cidadãos é inquestionável conquista das sociedades contemporâneas. Contudo, quando a democracia se transforma em mero artifício, há que saber encontrar a forma correcta de a conjugar com o tipo de sociedade em que se instala. Percebo melhor agora aqueles que pedem o reforço da autoridade real e a existência de um parlamento que faça representar deputados eleitos por sufrágio universal e quadros especializados, aqueles que com conhecimento são os garantes do bom funcionamento do Estado e da nação.

Nada disto é novo:
Compreendo que a ignorância de jornalistas estrangeiros que jamais leram sobre a história política e institucional deste país os leve a procurar paralelismo no Ocidente. Contudo, este país sempre foi terra de liberdade, desde o remoto reinado de Ramkamhaeng. O grande monarca, para impedir os abusos de poder dos senhores feudais, decretou o acesso de todos os homens livres à pessoa do Rei ou o direito de ao soberano enviarem petições. Para o efeito, mandou instalar um gongo em frente do palácio, destinado a ecoar o pedido de qualquer súbdito. Além disso, qualquer homem ou mulher tinha o direito de parar a procissão real e gritar "isto vai agradar a Sua Majestade", posto que o Rei a recebia em mãos. Durante a presente era de Banguecoque. o gongo foi substituído por um tambor e tal direito de petição resistiu até 1932, quando o país substituíu a monarquia paternal pelo constitucionalismo. Como lembra Kukrit Pramoj(1), o mais brilhente homem de cultura tailandês do século XX, deste direito, se bem que não mais exista, ficou um profundo vínculo de afinidade entre o Rei e o povo. A velha relação entre a monarquia e o povo impediu a feudalização. A história do Sião clássico é o de uma Magna Carta ao contrário: o poder sempre foi do Rei e o povo com ele sempre esteve na luta contra o feudalismo.

Poder militar e poder civil:
Séculos volvidos, para garantir controlo sobre a sociedade, o rei Trailok dividiu a governação em duas áreas distintas: a militar e a civil. A divisão militar estava submetida à autoridade de um "primeiro-ministro militar" (Samuha Phra Kalahom) indicado pelo Rei, enquanto os assuntos civis trinham como responsável um "primeiro-ministro civil" (Samuka Nayok). Ainda hoje, o Estado faz-se representar nos grandes acontecimentos pelos membros da família real. Os ministros e os militares são apenas tidos como funcionários (instrumentos) da boa governação. Entre 1932 e 1959, os civis e militares apossaram-se da velha tradição da autoridade real e o resultado foi desastroso. Aliás, os civis, divididos e associados em facções, nunca se entenderam e proporcionaram sempre aos militares argumentos de peso para a intervenção das espadas. A Tailândia, ou será uma monarquia ou não será [Tailândia].

Poder espiritual:
No budismo não existe propriamente uma teoria do poder e das formas de governo, mas uma teoria sobre a origem histórica do poder, bem como a fórmula para o exercício do poder justo e benigno: aquele que impede a violência, aquele que congraça e partilha, aquele que protege, pune sem excesso e premeia o mérito. Tão importante como o poder profano - que deve ser entendido como a aplicação e decantação à vida comum dos ensinamentos do Iluminado - é o poder de intermediação que o Rei detém entre o mundo profano e o mundo sobrenatural, executado com apoio do Sangha, que justifica a existência da sociedade. Daí que a democracia, como nós ocidentais a entendemos - luta sem derramento de sangue entre visões distintas do homem, da sociedade e do Estado - não caiba nos parâmetros de uma mundivisão budista, que não sendo totalitária, é marcada por claro propósito de unicidade. Se a vida pública é perturbada e se os agentes políticos não conseguem encontrar o entendimento requerido por esta concepção de unidade, justifica-se o fim da perturbação. Só vendo o problema político tailandês nesta perspectiva - e não como crónica fulanizada - poderemos entender o que está em causa. Não é, pois, uma luta entre o Bem e o Mal, como alguns teimam, mas uma crescente tensão entre a anomia, o relativismo e a atomização característicos do mundo ocidental, por um lado, e a visão budista de uma sociedade fundada em valores.
(1) MANIVAT, Vilas; VAN BEECK, Steve. Kukrit Pramoj: his wit and wisdom: writtings, speeches and interviews. Bangkok: Editions Duang Kamol, 1983
เพลงเทิดพระเกียรติ